terça-feira, 24 de julho de 2012

Depoimento de Claude Guméry-Emery sobre Jorge Amado




Ler Jorge Amado num país estrangeiro é entender pela literatura como se formou o Brasil, é tornar presente e patente o que o sociólogo Gilberto Freyre e o historiador Sérgio Buarque de Holanda explicaram. É compreender a história do Brasil além de Salvador e da Bahia. 


Jorge Amado sempre afirmou que seu pensamento não mudou no decorrer da longa carreira literária, entre o período do militante político que se inspirou no realismo socialista e o período do “amigo do povo” que integrou o realismo mágico; a verdade é que sempre defendeu os oprimidos, mudando apenas a avaliação das soluções; num primeiro momento, pensou que o socialismo vigente em outras partes do mundo e elaborado para sociedades industrializadas poderia vir a ser uma solução para o Brasil; depois passou a encarar a realidade histórica, social e racial do Brasil e demonstrou que o país também poderia ser ideologicamente independente e construir as próprias soluções. Foi da utopia socialista à valorização da miscigenação. Por enquanto, a história ainda não lhe deu o devido reconhecimento, mas ele nos entregou uma mensagem de esperança, oferecendo o Brasil como um modelo para o mundo, enquanto outros países viviam o drama do apartheid.


Para retomar uma expressão de Patrick Chamoiseau, escritor francófono do Caribe que já mencionou o nome de Jorge Amado em seus romances, ele foi “a voz daqueles que não têm voz”. 


Nos romances de Jorge Amado, vivenciamos os resultados da colonização portuguesa (mas não só; também da francesa, da inglesa, da holandesa, da espanhola, em outras terras) e da escravidão; quem lê Seara vermelha compreende o Movimento dos Sem-Terra; quem lê Os pastores da noite entende a violência urbana de hoje. Jorge é a articulação entre a herança do passado e a construção do futuro. Conta a epopeia da conquista das terras, denuncia o latifúndio nos “romances da terra”, defende os menores abandonados, reabilita a mulher negra e mestiça nos romances urbanos, explica como se estruturou e hierarquizou a sociedade brasileira, mostra como é longo o caminho a ser percorrido.


Jorge Amado sempre se colocou a favor de um povo que, ainda que mal alfabetizado, frequenta a escola da vida, que nunca tem férias, como ele próprio diz, e com ele o leitor vai aprendendo rindo e chorando. “Amanhã é dia de branco”, diz o dito popular, resquício de uma sociedade escravocrata que desprezava o negro e passara a considerá-lo atavicamente preguiçoso e inútil, já que sua força de trabalho fora substituída no sul e no sudeste por imigrantes europeus. 


Com Jorge Amado aprendemos a conhecer, respeitar, amar, compartilhar a cultura afro-brasileira, a culinária, a capoeira, o candomblé. Aprendemos a conhecer, respeitar, amar o outro, a identidade do outro, a cultura do outro, seja ele quem for. 


Muitas pessoas que criticaram o escritor baiano hoje em dia reconhecem que ele abriu caminhos de compreensão, de tolerância, de solidariedade, pela via literária, tanto no Brasil como no exterior. Jorge Amado sempre exaltou as forças de vida (o eros) contra as forças de morte (o thánatos). Não é um escritor apenas baiano ou brasileiro; é um escritor universal que falou de problemas universais. 


Também herdeiro de Oswald de Andrade, que o tratava de camarada e dizia “Me dá um cigarro”, Jorge Amado foi jogando fora a gramática culta e chegou a se exprimir na língua do povo, com palavrão, calão e poesia, amontoando história sobre história, pormenor sobre pormenor, digressão sobre digressão: cantador, cordelista, repentista, ele inventou o que os caribenhos passariam a chamar de “oralitura”. É que Jorge Amado sabe ser um contador de histórias. Uma coisa é conhecer histórias; outra bem diferente é saber contá-las e prender o leitor até a última linha, até a última palavra, fazê-lo ir do riso às lágrimas, da fúria à alegria. 


Com Gabriela surgiu o humor na prosa do escritor baiano, e muitos pensaram que ele tinha abandonado a luta, quando apenas se pusera a pensar e a escrever como brasileiro genuíno, para melhor se tornar, embora ainda não o soubesse, cidadão do mundo. Quem foi que disse que os humoristas não são tomados pelo absurdo e pela crueldade da vida, e que não tentam vencê-los pela inversão dos valores, como se pode conferir em Dona Flor e seus dois maridos? O humor não seria, como diz o escritor francês Robert Escarpit, uma arma de combate? As situações descritas por Jorge Amado freqüentemente não têm nada de alegres; a alegria está na maneira de contá-las, sem contudo desrespeitar os seus personagens, tão fiéis à realidade a ponto de às vezes passarem direto para a ficção, como a Mãe Aninha, mestre Pastinha, Carybé, Mirabeau Sampaio, ou de serem perfeitamente reconhecíveis pelo leitor nas ruas de Salvador e do Brasil, como Antônio Balduíno, Vadinho, cabo Martim, Otália e tantos outros. 


Hoje é fácil elogiar Jorge Amado, mas não se deve esquecer que em outros tempos isso levaria à cadeia, da mesma maneira como o escritor baiano foi parar na prisão pelas idéias que sempre defendeu, e que seus livros foram queimados em praça pública, em auto-de-fé, como se o fogo queimasse as idéias. Para ler, escrever, contar e pensar por conta própria, o caminho é longo. Essa é a lição de Jorge Amado.


* Claude Guméry-Emery é professora de literatura e cultura brasileira na Universidade Stendhal de Grenoble, na França. Doutorou-se em 1985 na Universidade de Rennes com a tese “As personagens femininas na obra romanesca de Jorge Amado”.

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